O
Brasil conta hoje com um robusto sistema de saúde, o SUS, com mais de
200 mil estabelecimentos de saúde, sejam ambulatoriais ou hospitalares;
com mais de 430 mil leitos e emprega diretamente mais de 3.500.000
profissionais e trabalhadores da saúde, sendo eles médicos, enfermeiros,
farmacêuticos, fisioterapeutas, odontólogos, nutricionistas,
psicólogos, assistentes sociais, etc., bem como um contingente imenso de
Força de Trabalho (FT) de nível técnico e auxiliar especializada em:
enfermagem, laboratório e análises clinicas, em radiologia, Socorristas,
Condutores de ambulâncias, Maqueiros, Agentes Comunitários de Saúde,
Agentes de Endemias, Agentes indígenas de Saúde, entre outros. Na linha
de apoio, gerência e administração encontram-se outro enorme
contingente, que engloba trabalhadores da administração, da recepção, da
infraestrutura de limpeza e higiene, da segurança dos ambientes de
trabalho. Também inclui a FT que se ocupa de enterrar nossos mortos
vítimas da pandemia: estamos falando dos sepultadores. Pela
essencialidade de cada segmento profissional na assistência e cuidados
em saúde, esses trabalhadores estão atuando nos 5.570 municípios das
cinco regiões do país (CNES, 2017). É com essa estrutura que o Brasil
tem enfrentado a pandemia da Covid-19, com uma equipe inter e
multiprofissional de primeira linha.
Dados
atualizados do Ministério da Saúde, mostram, em 21/12/2021, um quadro
com a doença instalada em todo o país: na ordem desde de março de 2020,
de 22.219.477 casos confirmados e 617.948 óbitos, com 2,8% de
letalidade. Por outro lado, informações recentes da mídia nacional, por
meio do IO, o Brasil contabilizou em 31/12/2021 22.292.099 casos
confirmados e 619.335 óbitos, passando em apenas 6 dias de janeiro de
2022 para 22.402.522 casos confirmados e 619.956 óbitos em toda a
população (Tabela 1).
Os
Gráficos 1 e 2 retratam a evolução da pandemia (atualizados e ajustados
pelo Consórcio de Imprensa - IO), evidenciando que entre final de
novembro de 2021 e início de janeiro de 2022, houve um aumento de
308.063 casos confirmados e 5.275 novos óbitos.
A
descoberta da nova variante Ômicron do coronavírus em Batsuana (África)
trouxe um sinal de alerta ao mundo sobre o rumo da pandemia. Esta
variante apresenta altíssima taxa de transmissibilidade e um risco maior
de reinfecção cerca de três vezes.
Após
meses com queda dos indicadores da Covid-19 no Brasil, a pandemia volta a
assustar o país neste início de 2022 com a disseminação da variante
Ômicron, que já predomina. Essa propagação emerge no momento em que o
país está prestes a completar um ano da aplicação da primeira dose da
vacina contra a Covid-19 em uma profissional de saúde do estado de São
Paulo, em 17 de janeiro de 2021. A vacinação vem se mostrando eficaz na
redução da gravidade e da mortalidade, já bem descrita nos países do
hemisfério norte. Mas a transmissibilidade é exponencial.
A
despeito da priorização da vacinação nos profissionais de saúde e do
avanço da cobertura vacinal na população do Brasil, a distribuição das
vacinas segue desigual no mundo, sobretudo na África. A situação levou a
Organização Mundial da Saúde (OMS) a emitir um alerta, no final de
2020, sobre baixa vacinação dos profissionais de saúde no continente, já
que apenas 27% do grupo havia completado o esquema de vacinação contra a
covid-19. Há cerca de um mês, em novo comunicado, a Organização admitiu
que, em virtude da escassez de imunizantes, o referido continente terá
70% de vacinados somente em 2024.
As
iniquidades na distribuição e acesso às vacinas a nível global,
combinadas com o limite das campanhas de vacinação em países com
disponibilidade e acesso às vacinas, conforme reforça o Boletim do
Observatório Covid-19 Fiocruz (2 de dezembro de 2021), vêm contribuindo
para o surgimento de variantes que se disseminam pelo mundo, como a
Ômicron.
As evidências surgem da demanda de
atendimento nas unidades de saúde e de realização de testes. Há mais de
um mês o apagão dos dados não permite sua consolidação: faltam
diagnóstico e notificação. O aumento de infecções tem sobrecarregado a
rede de saúde. O vírus atinge crianças que ainda não começaram a ser
vacinadas e lotam as unidades de saúde. Os efeitos também são sentidos
no trabalho. Novamente, estão na linha de frente os profissionais de
saúde, incluindo os inviabilizados: adoecem e precisam ficar afastados
de suas atividades. Alguns setores retomam o trabalho a distância.
Muitas delas, devido ao número elevado de trabalhadores afastados pela
doença.
Estima-se que haverá um aumento
importante no número de casos e consequente aumento de hospitalização
dos pacientes infectados acarretando forte sobrecarga no sistema de
saúde. Concomitante a esta sobrecarga do sistema de saúde a contaminação
dos profissionais de saúde da linha de frente com consequente
afastamento (quarentena) de seus postos de trabalho tornando ainda mais
crítico o atendimento da população brasileira.
Na
medida em que uma nova variante do coronavírus avança no mundo, mais
uma vez persistem os trabalhadores de saúde como um dos segmentos mais
vulnerabilizados diante da situação. Neste contexto as autoridades
sanitárias devem atuar de forma ética e responsável para proteger a
população e em especial os trabalhadores de saúde, garantindo-lhes
adequadas condições e equipamentos de trabalho.
O
retardo criminoso e sem respaldo científico da vacinação de crianças
entre 5 e 11 e certamente terá impacto também entre os profissionais que
atuam com essa população infantil, como pediatras e equipe de
enfermagem, como vimos no estudo do “Inventário dos óbitos dos médicos e
de equipe de enfermagem” realizado pela Fiocruz mostrando que são esses
especialistas um dos mais afetados, indo óbito por Covid-19. Com o
recrudescimento do coronavírus e sua nova variante e com a repulsiva
insistência em não proteger as crianças com a vacinação, o governo
brasileiro repete o seu descaso com a vida humana. Sem responsabilidade
pública e confrontando a ciência, permanece na contramão do mundo,
negando o direito à saúde a milhões de brasileiros e brasileiras. Este
negacionismo governamental atinge muito fortemente os trabalhadores de
saúde, já exauridos e adoecidos de um longo percurso de trabalho pouco
protegidos e em condições de trabalho inadequadas.
Outro
fato grave refere-se a redução da demanda de cuidados, mesmos na
Atenção Básica que caíram significativamente, sendo que muitos
profissionais contratados por OSs estão sendo demitidos desde o final de
2020, produzindo uma grave desaceleração da estrutura de atendimento à
população e uma clara e inaceitável sobrecarga daqueles que se mantém
empregados.
É fato que no início da pandemia
em 2020 sabíamos muito pouco sobre a Covid-19. Com o advento de
pesquisas, em particular a que estamos realizando na FIOCRUZ, passamos a
conhecer um pouco mais sobre a pandemia e os seus impactos nas relações
de trabalho na saúde, na saúde do trabalhador, em especial a saúde
mental e as sequelas permanentes e os óbitos provocados pela pandemia.
A
produção de conhecimento nessa área tem o escopo de conhecer o trabalho
em saúde e os impactos, para recomendar as autoridades sanitárias e a
sociedade como um todo, ações que visem evitar, ou mesmo amenizar essas
situações, para que o trabalho em saúde esteja melhor preparado, tanto
no setor público como privado, para enfrentar novas epidemias, uma vez
que tudo indica que teremos um longo período pandêmico, e outros vírus
podem surgir ou mesmo como demonstra a realidade, enfrentar as
constantes mutações genéticas do Covid-19, associando-se, inclusive a
outros vírus.
No Brasil, a pandemia encontrou
condições para propagar e ceifar a vida de mais de 619 mil pessoas.
Segundo dados oficiais da OMS, inclusive milhares de trabalhadores da
saúde. Hoje ocupamos o 2º lugar no mundo em número de mortes.
Infelizmente, o cenário para 2022 é de agravamento das condições sociais
da população brasileira, principalmente sobre os mais vulneráveis.
À
época quando registrávamos mais de 500 mil óbitos, o contexto da
pandemia, já mostrava uma dura realidade daqueles trabalhadores que
estão na linha de frente. Um cenário marcado pela dor, sofrimento e
tristeza com fortes sinais de esgotamento físico e mental. imposta pela
incerteza da doença – Covid-19, em ambientes com trabalho extenuante,
com sobrecarga de trabalho para compensar o elevado absentismo e mortes
de colegas. O medo da contaminação e da morte iminente acompanham seu
dia-a-dia, em uma gestão marcada pelo risco de confisco da cidadania do
trabalhador (perdas dos direitos trabalhistas, terceirizações,
desemprego, perda de renda, salários baixos, gastos extras com compras
de EPIs complementares, uso de transporte alternativo e alimentação). Se
não bastasse esse cenário desolador, eles experimentam a privação do
convívio social entre os colegas de trabalho, a privação da liberdade de
ir e vir e do convívio social e a privação do convívio familiar.
Passados meses e iniciando um novo ano, o cenário não se modificou positivamente, ao contrário, se agrava e nos preocupa.
Os
estudos da Fiocruz sobre as condições de trabalho e saúde mental dos
trabalhadores da saúde, nos apontam para algumas reflexões:
No aspecto político administrativo,
um governo central que assumiu de forma aberta a negação das evidências
cientificas, adotando ações por vezes agressivas contra aqueles que se
colocam ao lado da ciência. A ANVISA por exemplo, tem sofrido ataques
contundentes em razão de decisões institucionais inerentes a sua atuação
como agencia reguladora em saúde. As relações de trabalhos foram ainda
mais fragilizadas, com o crescimento do trabalho precário e ataques aos
direitos trabalhistas, por inércia ou inexistência de atuação desses
Órgãos, principalmente o Ministério do Trabalho, MEC e Ministério da
Saúde. A Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, instância do SUS
no âmbito Conselho Nacional de Saúde foi extinta pouco antes de iniciar
a pandemia e certamente, faz enorme falta nessas negociações para rever
esse quadro de precariedade, desolação e desamparo que se encontra
nossos trabalhadores da saúde. É imperioso que seja restaurada essa
instância de negociação do trabalho no SUS.
O SUS e os órgãos federais de Controle: É
fato que a pandemia, apesar de todos os ataques para enfraquecê-lo,
encontrou um SUS sólido, estruturado e com uma Força de Trabalho em
Saúde em condições de responder as demandas da pandemia. Contudo, ainda
não foi totalmente desmontado em razão das decisões judiciais (STF) que
garantem as regras constitucionais e preservam intactas as estruturas de
saúde dos estados e municípios, legitimando essas instâncias e controle
social, anulando as decisões que contrariem os princípios e
diretrizes do SUS.
A Legislação de amparo aos trabalhadores, o Direito à saúde e a atuação do STF e o Tribunal Superior do Trabalho (TST).
o Supremo exerce com plenitude a defesa da Constituição e da Ordem
Jurídica. “última trincheira em defesa dos direitos à saúde”. Anulou
praticamente todas as decisões que contrariavam a constituição, o
direito à saúde coletiva e a organização do SUS. O Supremo ainda vai
julgar o pedido do governo federal pela inconstitucionalidade da lei que
institui o incentivo financeiro aos profissionais e trabalhadores e a
seus familiares atingidos pela Covid-19. O TST também adotou decisões
que asseguram os direitos trabalhistas, sociais e a proteção dos
trabalhadores, principalmente no campo do direito previdenciário.
Todas
estas questões levantadas orientam o caminho a seguir: o necessário
alinhamento com as instituições públicas, entidades científicas e
sindicais, e a outros pesquisadores que já se pronunciaram em defesa da
vida, da ciência e das vacinas para todos. Tudo isto deve se realizar
com o devido respeito e adequada proteção aos trabalhadores da saúde.
Rio de Janeiro, 08 de janeiro de 2022.
Autores
1 - Maria Helena Machado
2 - Antônio Vieira Machado
3 - Eleny Guimarães Teixeira
4 - João Batista Militão
5 - Swedenberger Barbosa
6 - Filipe Leonel
(1)
Socióloga, pesquisadora DAPS/ENSP e do CEE-Fiocruz.
(machado@ensp.fiocruz.br). Coordenadora geral das Pesquisas: “Condições
de Trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no
Brasil” (Fiocruz); “Trabalhadores invisíveis da Saúde: condições de
trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil” (Fiocruz) e
“Trabalhadores da Saúde Indígena: condições de trabalho e saúde mental
no contexto da Covid-19 no Brasil” (Fiocruz).
(2)
Médico, diretor institucional da FELUMA, professor da FCMMG, coordenador
adjunto da Pesquisa: “Trabalhadores invisíveis da Saúde: condições de
trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil” (Fiocruz);
(3)
Médica, professora da Faculdade Souza Marques, coordenadora adjunta da
Pesquisa: “Condições de Trabalho dos profissionais de saúde no contexto
da Covid-19 no Brasil” (Fiocruz);
(4) Advogado,
pesquisador colaborador do NERHUS-ENSP, coordenador adjunto da Pesquisa:
Trabalhadores invisíveis da Saúde: condições de trabalho e saúde mental
no contexto da Covid-19 no Brasil (Fiocruz);
(5)
Cirurgião-dentista, pesquisador da Gereb-Fiocruz-DF, coordenador adjunto
da Pesquisa: “Trabalhadores da Saúde Indígena: condições de trabalho e
saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil” (Fiocruz);
(6) Jornalista, assessor do CCI Ensp-Fiocruz, membro da equipe técnica da pesquisa e do NERHUS-ENSP (Fiocruz)
Foto capa: Breno Esaki/SES-DF
Foto Equipe Saúde: Rovena Rosa, Agência Brasil