Em junho de 1917, décadas antes da consolidação das
leis trabalhistas no Brasil, cerca de 400 operários - em sua maioria mulheres -
da fábrica têxtil Cotonifício Crespi na Mooca, em São Paulo, paralisaram suas
atividades.
Por:
Camilla Costa/BBC Brasil em São Paulo
Créditos:
Arquivo/EDGAR
LEUENROTH | UNICAMP
Eles
pediam, entre outras coisas, aumento de salários e redução das jornadas de
trabalho, que até então não eram garantidos por lei. Em algumas semanas, a
greve se espalharia por diversos setores da economia, por todo o Estado de São
Paulo e, em seguida, para o Rio de Janeiro e Porto Alegre. Era a primeira
"greve geral" no país.
Mas
uma das principais diferenças entre aquela e a greve geral convocada para esta
sexta-feira, em protesto contra as reformas trabalhista e da Previdência, é
que, em 1917, ela não foi anunciada como tal, disse à BBC Brasil o historiador
Claudio Batalha, da Unicamp.
"Não
é uma greve que já tivesse bandeiras gerais. Ela começa com questões
específicas dos setores que vão aderindo ao movimento grevista, alguns por
solidariedade. Depois é que a pauta passou a incluir desde reivindicações
relacionadas ao trabalho até reivindicações de cunho político - libertação dos
presos do movimento, por exemplo."
Uma
destas questões específicas, menos comentada nos livros de história, era o
assédio sexual. Segundo Batalha, parte da revolta das funcionárias do
Cotonifício Crespi era o assédio que sofriam dos chamados contramestres,
funcionários que supervisionavam o chão de fábrica.
"Isso
não era incomum na época. Greves anteriores já haviam começado contra
determinado funcionário que tivesse um cargo de chefia e tirasse proveito desse
poder", explica.
Crescimento
Mas
se a convocação de 2017 reflete a insegurança causada pelo desemprego e pela
recessão, em 1917, a indústria brasileira ia de vento em popa.
Na
verdade, os lucros das empresas chegavam a duplicar a cada ano.
"Entre
1914 e 1917, com a Primeira Guerra Mundial, se passou de uma recessão econômica
a um superemprego, porque os produtos brasileiros passaram a substituir os
importados e a serem exportados", explica o historiador italiano radicado
no Brasil Luigi Biondi, da Unifesp.
"Em
1914, o Cotonifício Crespi lucrou 196 contos de réis. No ano seguinte, o lucro
foi de 350 contos de réis. E foi aumentando. Enquanto isso, aumentavam as horas
de trabalho."
Com
o aumento da produção, as fábricas brasileiras, que tinham poucas máquinas,
vindas do exterior, tiveram que usá-las por mais tempo. Isso significava que os
operários passaram a trabalhar até 16 horas por dia, sem aumento de salário.
De
acordo com Biondi, a insatisfação das mulheres se explica também pelo fato de
que elas acompanhavam mais de perto a perda de poder aquisitivo dos
trabalhadores.
"Além
de também serem operárias, porque naquele momento havia muito emprego para elas
na indústria têxtil, elas também controlavam os gastos das famílias. Então viam
o aumento acelerado da inflação dos produtos."
No
final de junho, a paralisação dos operários do Crespi contagiou os 1.500
operários da fábrica têxtil Ipiranga. Em seguida, se espalhou pela indústria de
móveis, concentrada no Brás, e chegou até a fábrica de bebidas da Antarctica.
"Em
julho, a greve parou a cidade (São Paulo). Havia embates de rua e tentativa de
saques aos moinhos que produziam farinha por causa da crise de abastecimento.
Muitos foram mortos e feridos nos confrontos com a polícia", diz Biondi.
O
movimento ganhou mais fôlego no dia 11 de julho, quando milhares acompanharam o
enterro do sapateiro espanhol José Martinez, de 21 anos.
Ele
morreu com um tiro no estômago depois que uma unidade de cavalaria da polícia
dispersou manifestantes que quebraram barris de cerveja diante da fábrica da
Antartica, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, que noticiou o
confronto.
"A
partir daí, a greve se alastrou para quase todas as cidades do interior de São
Paulo. Campinas, Piracicaba, Santos, Sorocaba, Ribeirão Preto. Até Poços de
Caldas, no sul de Minas, que não era uma cidade industrial, teve movimentos de
greve", afirma o historiador.
Negociação
Em
16 de julho - mais de um mês após o início da paralisação no Cotonifício Crespi
- um acordo entre autoridades, organizações trabalhistas e industriais, mediado
por jornalistas, pôs fim à greve em São Paulo. Mais ainda não era o fim da
greve geral.
"Só
em São Paulo a greve de fato terminou com uma negociação única. No Rio e em
Porto Alegre, os movimentos tiveram dimensões gerais, mas só terminaram na
medida em que cada setor chegava a um acordo com seu patronato. O ritmo de
saída da greve foi aos poucos, assim como a adesão", explica Batalha.
Segundo
Biondi, até mesmo na cidade de São Paulo ainda havia categorias entrando em
greve no dia 18 de julho, como os pedreiros. Parte dos empresários se recusava
a assinar os acordos e queria negociar condições diretamente com os
funcionários.
Mesmo
com a assinatura dos acordos, a consolidação dos direitos só viria em 1943,
durante o regime de Getúlio Vargas.
"O
que acontecia muitas vezes na época é que algo era obtido com uma greve,
passava-se algum tempo e essa reivindicação voltava para nada", diz
Claudio Batalha.
"Em
1907, também houve uma série de greves pedindo a jornada de trabalho de oito
horas. E elas chegaram a diminuir, mas, depois de algum tempo, o patronato
voltou a estabelecer as jornadas anteriores. O mesmo ocorreu após 1917."
A
experiência da primeira greve geral também fez com que os empresários se
preparassem para enfrentar futuras paralisações - o que tornou novas
negociações mais difíceis para os trabalhadores.
"Uma
das coisas que levou ao sucesso relativo da greve em 1917 é que as fábricas não
tinham estoques. Quando os operários paravam, não havia produtos nas lojas. A
partir daí, eles passaram a ter grandes estoques, e podiam permanecer sem
funcionar um certo período porque tinham produção para vender."
Batalha
lembra, no entanto, que o acordo só surgiu depois que "a greve atingiu
dimensões tais que não tinha mais como controlar o movimento".
"A
primeira tentativa de lidar com a greve foi de repressão. Essa era a tônica do
período, tanto que houve mortes. Parte do processo de ampliação da greve,
inclusive, se deveu a essas mortes."
"Até
hoje a solução repressiva pode ser um desserviço às autoridades. Se a gente
pensar nos protestos de 2013, a virada no número de pessoas em São Paulo foi
quando houve uma repressão desproporcional à manifestação", afirma.
Ideologia
Em fevereiro de 1917, meses antes da greve
brasileira, mulheres que trabalhavam na indústria têxtil deram início a
protestos e a uma paralisação que teria consequências ainda maiores do outro
lado do mundo: a Revolução Russa.
Os protestos começaram contra a escassez de
alimentos no país e rapidamente ganharam a adesão de outros trabalhadores e a
simpatia das forças de segurança. Ao fim de uma semana, a mornaquia russa
chegava ao fim, abrindo caminho para a revolução comunista, no fim daquele ano.
"Essa greve também é importante porque mostra a
conexão do Brasil com o resto do mundo. Naquele ano, greves como aquela
ocorreram em diversos países", diz Luigi Biondi.
Ideologias como o anarquismo e o socialismo
marxista, que chegaram a São Paulo principalmente pelos imigrantes italianos,
tiveram um papel importante na organização do movimento.
"Por causa da Rússia, eles tinham a ideia de
que aquilo poderia levar a uma insurreição dos trabalhadores. Isso não ocorreu,
mas a cidade foi tomada. Pela primeira vez isso espantou as elites do país, que
começaram a se dar conta de que a questão social urbana era grave e tinha que
ser considerada."
Batalha acha que as correntes socialistas
"tinham certa liderança", mas que sua influência era maior sobre
trabalhadores qualificados.
"O que faz com que uma greve funcione é que as
pessoas sintam que aquele estado de coisas chegou ao limite. Uma das
características importantes de 1917 é que, pela primeira vez, setores que não
participavam desse tipo de movimento começaram a participar."